Vontade de Ferro — 1º capítulo

Nikolai Leskov — trad. Francisco de Araújo

Edições Jabuticaba
5 min readJul 30, 2020
Capa de Vontade de Ferro, de Nikolai Leskov (Ed. Jabuticaba, 2020)

Primeiro capítulo da novela de Nikolai Leskov, publicada pelas Edições Jabuticaba:

1.

Discutíamos com toda a veemência, insistindo na ideia de que os alemães, ao contrário de nós, têm uma vontade de ferro e por isso disputar com eles era muito perigoso. Uma gente sem força de vontade, como é a nossa, dificilmente levaria a melhor. Essa era uma das mais corriqueiras discussões de nosso tempo. Embora fosse bastante aborrecida, discutíamos com verdadeira obsessão.

O único que não tomava parte no debate era o velho Fiódor Afanássievitch Vótchniev, que tranquilamente preparava o chá; mas, servida a bebida, quando todos já seguravam as canecas, Vótchniev se manifestou:

–Eu escutava, senhores, escutava o que discutiam e acho que estão apenas jogando conversa fora. Suponhamos que os alemães tenham mesmo essa vontade e que ela seja bela e firme, como estão dizendo, e que a nossa coxeie um pouco; ainda que isso seja verdade, para que se desesperar? Não há razão para isso.

–Como não há? Pressentimos todos, tanto eles quanto nós, que vamos acabar nos enfrentando.

–E o que tem demais se isso acontecer?

–Vão nos dar uma surra.

–Que nada!

–Sim, é claro que vão.

–Ora, por favor, não é assim tão simples nos açoitar.

–E por que não seria? O senhor por acaso conta com alguma aliança? É só mesmo com o zé-povinho, meu velho, que se pode contar e com mais ninguém.

–Talvez seja verdade. Mas por que desprezam assim o zé-povinho? Isso não se faz, me perdoem, mas não se faz. Em primeiro lugar, porque são eles os russos mais fiéis, além disso, têm muito bom coração; são capazes de se atirar tanto ao fogo quanto à água se for preciso. Isso tem algum valor em tempos práticos como o nosso.

–Tem, sim. Mas não contra os alemães.

–Pelo contrário, é justamente nesse caso que isso mais tem valor; no embate com o alemão, que sem cálculo não dá um passo e sem um instrumento, como se diz, não chega a sair da cama.

Em segundo lugar, vocês não estão dando muita importância à vontade e ao cálculo? Aliás, a esse respeito, eu me lembro sempre das palavras — um tanto cínicas, mas até que justas — de um general russo que, certa vez, disse sobre os alemães: “É mesmo uma pena que eles calculem com tanto brilho, enquanto nós, o que fazemos é preparar para eles uma boa gaiatice, tão boa que não vão ter tempo de entender.” E, realmente, senhores, não se pode deixar de contar com isso.

–Com uma gaiatice?

–Sim, gaiatice, podem achar que é apenas isso, mas aí também se pode ver o que é a bravura de um povo jovem e vigoroso.

–Bem, meu velho, já ouvimos essa conversa: já estamos fartos dessas histórias de imenso vigor, de juventude milenar…

–Ora essa! Também estou farto de vocês com esse ferro alemão: e o conde é de ferro,¹ e a vontade é de ferro, e vão nos engolir… Pois que engulam e arrebentem com todo o seu ferro! O que é que há com vocês? Será que endoideceram? São de ferro, pois muito bem, que o sejam! Nós somos outra coisa, somos uma massa simples, mole, crua… Uma massa mal assada, se quiserem. Devem lembrar, porém, que não há machado que quebre uma porção de massa. O mais provável é que, nessa tentativa, fique perdido por lá o machado.

–Ah, sim, o senhor fala daquela velha crença, a de que posamos de valentes para todo mundo?

–Não, longe disso; eu não falo daquela velha crença. Também não me importo com essas fanfarronices, nem com esses seus temores; falo da natureza das coisas, isso, sim; de como as vi, de como as conheço e do que realmente acontece quando o ferro alemão se encontra com a massa russa.

–Certo, deve ser um desses pequenos casos de onde se tiram as mais amplas conclusões.

–Sim, o caso e a conclusão… Para ser franco, não sou capaz de compreender: por que se opõem às conclusões? Ao meu ver, não é mais tolo que vocês, meus amigos, aquele inglês que, ao terminar de ouvir a história de Almas mortas, de Gógol, exclamou: “Oh, este povo é insuperável.” — E por quê? — Perguntaram. Ele ficou surpreso, mas não demorou pra responder: “Ninguém pode esperar vencer um povo assim, do qual pode surgir um canalha como Tchítchikov”.²

Sem querer, caímos na risada; depois observamos a Vótchniev que era muito estranha essa maneira que ele tinha de elogiar os compatriotas, mas ele torceu a cara mais uma vez e respondeu:

–Me desculpem, mas com essa mente estreita dos senhores, chega a ser difícil manter uma conversa. Eu exponho uma coisa simples e já logo procuram uma tendência, uma conclusão geral. Está na hora de começarem a abandonar essa vilania e aprenderem a encarar as coisas com simplicidade. Ora, eu nem enalteço, nem reprovo meus compatriotas, o que estou dizendo é que saberão se defender, seja com a inteligência, seja com a gaiatice, eles não se deixarão ofender; agora, se ainda não compreenderam, mas quiserem saber como essas coisas podem acontecer, posso contar um caso a respeito de uma vontade de ferro.

–Comprida a história, Fiódor Afanássitch?³

–Não, não é comprida; pelo contrário, é pequena. Tão pequena que é possível começar agora e terminar de contá-la ainda durante o chá.

–Então vamos; uma história curta é sempre possível ouvir, até mesmo se for sobre alemães.

–Façamos silêncio; a história vai começar.³

Notas

  1. Referência ao político prussiano — primeiro-ministro da Prússia e chanceler do Império Alemão — Otto von Bismarck (1815–1898), alcunhado o chanceler de ferro. Bismarck foi artífice da política conservadora e militarista que conduziu a Alemanha à unificação político-administrativa, oficializada em 1871.
  2. Pável Ivánovitch Tchítchikov, personagem central do romance de Gógol, é um funcionário público afastado por corrupção que viaja pelo interior da Rússia comprando almas mortas — servos mortos de fato, mas que ainda figuram nas estatísticas oficiais — com o fim de hipotecá-las ao governo.
  3. Forma contraída do patronímico Afanássievitch.

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