Posfácio a variações sobre tonéis de chuva

Edições Jabuticaba
11 min readJan 21, 2021

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por Douglas Pompeu

Regentonnenvariationen (2014), premiado em 2015 na feira do livro de Leipzig, é uma amostra de um dos pontos altos de toda a obra original e inventiva de Jan Wagner. Uma obra que se ocupa com temas e objetos do cotidiano, levando-os ao limite do conhecido e ao limite das formas tradicionais da lírica ocidental. Não é exagero dizer que Jan Wagner é um mestre da forma. Não somente as conhece, como as reinventa com precisão e sutileza, sem que o poema se feche ao leitor. Instiga uma leitura livre, acessível, fluida. Daí, por exemplo, as rimas tortas (slant rhymes) de Wagner, muitas vezes parciais, soantes, paralelas, visuais, nunca redondas, nunca completas, que ao invés de formatar, arejam o texto com ruídos e farpas sonoras e visuais em uma para- taxe vertical — “giersch” rima com “garage” e “geräusch”, “koala” com “kohle”, “mütter” com “motor”, “hü und brr” com “eroberer”.

A rima, ao invés de ser vista como recurso obsoleto e antiquado, torna-se no projeto do poeta material de experimentação e inovação. Não por acaso, Jan Wagner abre seu discurso de agradecimento ao prêmio Georg Büchner com uma alusão à sua fascinação por rimas. “Não faço versos”, teria confessado Büchner a um amigo; mas rimas, assegura Wagner, ele fazia a torto e a direito: “Recht” com “Rebellion”, “Macht” com “Knetschaft”, “Geschichte” com “Geschick” e “Schicksal”. Aliás, é a partir desta constatação que o poeta resume o seu ofício ao fim do discurso: “sim, senhoras e senhores, eu faço versos […] eu faço versos que, embora joguem com a rima, não rimam […]”. Versos que não compreendem o jogo com a sonoridade como brincadeira ou jogral, mas como fricção criativa, como meio de atrair e desatar imbricações cerradas, um jogo de libertar-se, um jogo sandeu com o “máximo de liberdade no espaço mais estreito”: o poema.

Assim é que Jan Wagner define a sua poesia: como espaço fechado ou perfeitamente selado, em cujo interior leitor e poeta, uma vez encerrados nele, encontram-se sem saber como ali entraram ou como é possível saírem ilesos. Essa câmara feita de linguagem, na qual, de forma espantosa, todos encontram seu lugar sem que se sintam aprisionados, é, como afirma Wagner, feita de contradições, disparates e maravilhas em poucas linhas. O espanto ou o estarrecimento diante deste espaço hermético e enigmático e ao mesmo tempo libertador é que permite o poeta aproximar o poema da conhecida looked room mistery, presente nos romances poli- ciais como cena do crime perfeito. O modelo claro aqui é Edgar Allan Poe com seu conto “Os assassinatos da rua Morgue”. Para Wagner, diante do inexplicável da cena do crime, o leitor segue a leitura do caso policial assim como a leitura do poema, já que cada poema se desenvolve aqui como o caminho para um descobrimento. É o espanto, não a solução do enigma, que leva o leitor a diluir-se no texto até levá-lo a uma descoberta. A poesia torna-se neste caso uma espécie de hieróglifo na página, com a diferença de que mesmo decifrado segue enigmático. Voltamos ao poema ainda inúmeras vezes e não nos damos por satisfeitos. A experiência de leitura nos mantém indignados sobre o que acabou de acontecer ante nossos olhos e sobre o que, embasbacados, não podemos explicar.

Diferentemente do romance policial, no qual o leitor se depara com um mundo às avessas, que, uma vez solucionado, o devolve para o seu mundo ordenado, a poesia o translada deste mundo ordenado para um espaço às avessas, através do qual a experiência de leitura devolve o leitor a um mundo que agora foi confundido em sua aparente ordem, isto é, em sua maior fragilidade: a linguagem. As variações de Jan Wagner atuam, neste caso, como uma descoberta através de um universo que só aparentemente conhecemos. Um mundo ordenado e naturalizado de forma sempre frágil, para cujos detalhes, paradoxos e maravilhas o observador minucioso ou poeta-detetive aponta a sua lupa, bem ali na linha mais tênue que nos separa desta realidade conhecida, para então tensioná-lo com sua pinça ou, como sugere o título do discurso de Wagner, pô-lo sob escalpelo de sua linguagem.

Uma poética do minúsculo, assim também seria possível nomear o projeto de Jan Wagner. Um poeta da variedade imanente e terrena das pequenas coisas, a começar pela consequente tipografia. Assim como Hans Magnus Enzensberger, Wagner evita consequentemente as maiúsculas dos substantivos alemães, enquanto, por outro lado, evita o uso ativo do verbo, escrevendo sempre que possível em orações relativas. Maiúsculas atuam aqui como recurso visual e mimético da letra. O “V” do arado dos gansos no céu, o “F” besuntado nos guardanapos e o “S” do serpentear flexível do proteu. Todos estes recursos principalmente visuais não refletem somente uma poética de minúcias, como também uma poética preocupada com a disposição dos textos que parecem prontos a se descolar da página e a pairar no ar, suspendendo o tempo e ampliando o seu espaço, como no poema “ensaio sobre mosquitos”. Um recurso nada trivial que nos leva de volta a uma metarreflexão constantemente presente nestas variações: a escrita. Uma escrita que nasce ela mesma na contradição de tentar suplantar o seu objeto tomando a sua forma — “a pedra de rosetta sem a pedra”.

O jogo da forma chega ao ápice de sua composição com duas sextinas. Se aqui e ali o leitor quase não se dá conta de que está lendo um soneto, uma ode ou uma estância, de todos os poemas não passam desapercebidas as duas sextinas perfeitas na primeira e na última parte do livro e que tratam justamente do tema central das variações: a metamorfose. Wagner parece consciente da atração que uma forma justa e ao mesmo tempo permutável e flexível como a sextina é capaz de causar no leitor de poesia. Ao considerar formas ajustadas pela tradição não como objetivo em si, mas como meio ou material de composição, o poeta chega a resultados inesperados. Como menciona Ashbery, ao compor uma sextina, o poeta é assim obrigado a aterrissar os pés em um lugar onde eles nunca pisaram antes.

Ao valer-se de formas tão complexas sem que o texto exiba os andaimes da sua construção, o trabalho de Jan Wagner acentua que o difícil não é somente dar conta da complexidade que nos cerca, mas dar a ela uma forma justa, clara e, além disso, livre e original. Não só na questão melopaica, como também com relação ao que Ezra Pound nomeou de fanopeia, variações sobre tonéis de chuva é composto de uma imaginação visual de alta originalidade e invenção. A série de haicais que intitulam o livro é um exemplo do trabalho minucioso e multifacetado com a imagem de um poeta que desde o seu debut em 2001 com Probebohrung im Himmel (“Ensaio de perfuração no céu”) cria achados visuais através de metáforas inusitadas e imagens que levam o leitor de um detalhe em um ramo de abrunhos até a uma vista aérea com fineza e naturalidade, como no poema “qualle” (água-viva), publicado em Australien (2010):

água-viva

olho voraz,

o mais simples entre os simples —

apenas um por cento de tudo o separa

daquilo à sua volta

arrasta-te adiante

ao incógnito: uma lente ígnea, polida

por ondas e marés; uma lupa

que amplia o atlântico.

Construções visuais como esta maravilhosa água-viva como lente de aumento que amplia o oceano se encontram em todas as variações, dilatando minúcias em imensidões, justapondo dimensões e texturas, sobrepondo superfícies translúcidas até que, por exemplo, a imagem de dois músicos em fraques pretos apertados em um ponto de ônibus, em contraste com a queda de neve, possa ser comparada com a imagem violenta de uma tortura, em que se cobriam criminosos com piche e penas (“lembrança de buffalo”). Nos quatorze haicais da série, por exemplo, são agora os tonéis de chuva, uma vez abertos, que surgem como um olho de melro escuro a refletir as nuvens do céu até tornarem-se, no inverno, já redondamente congelados, as auréolas de homens santos. As imagens, os tons, como sugerem “os tonéis” do título do livro, assim como nuances de luz, sombra e cores, não estão apenas presentes nas construções visuais de Wagner, mas também no seu interesse pela pintura. Além do poema “três asnos, sicília”, composto de três sonetos ao modo de uma natureza morta, e o último soneto “autorretrato com enxame de abelhas”, cuja imagem de uma Madalena, pecadora exemplar coberta de pelos, é retirada da iconografia cristã ocidental, o longo poema “a canaletto” e “pieter codde: retrato de um homem com relógio” são traduções de pinturas clássicas em poesia.

Porém, o que salta à vista é que todo esse virtuosismo de Jan Wagner não se dá às custas de seu leitor. Na poesia de Wagner não há qualquer ar de presunção ou tentativas de exibir-se aqui ou ali com “torrões de genialidade” na construção de uma metáfora, de um soneto ou de uma sextina. Como poeta interessa-lhe mais a tapeçaria do mundo, com vistas a um projeto de linguagem, do que, como mencionado anteriormente, a exibição de si mesmo, que até durante um autorretrato encontra-se envolto por um enxame de abelhas, tornando-se visível apenas com o seu desaparecer. O poeta, pouco visto nestas páginas, prefere manter-se atrás de sua poesia, atrás de suas abelhas, atrás de seu jardim, figura camuflada com o seu fundo, como o eu-lírico em a “coruja”: “mal se vê, antes se sente”.

Em seu lugar encontram-se observações precisas, metáforas incisivas, sensações balanceadas com um humor discreto, generosa e humildemente dispostos na página. Seus poemas, muitos deles dedicados a outros poetas, não são só seus, mas também do seu primeiro parceiro, o leitor, para quem Jan Wagner cede espaço e convida à participação com recursos de uma linguagem clara e corrente. Decisivo para o poeta é que ele não vê problema, por exemplo, como via Gottfried Benn, na “invasão” do prosaico em sua lírica, consciente de que esta “invasão” não significa uma diluição, mas uma expansão do texto poético.

“Os mais belos poemas partem sempre do confidente” e o seu objeto deve ser também confiável, afirma um poeta consciente de que a poesia dispõe de um material de confiança a todos: a linguagem. Realizado com êxito nestas páginas, o projeto do poeta é plenamente elucidado quando ele mesmo se coloca na posição do leitor de poesia: “parece-me que os melhores poemas e imagens são aqueles, e isto é o maravilho neles, que unem a sua originalidade a uma grande obviedade; que agem em nós, como se houvesse somente esta única imagem possível, como se o leitor ou o ouvinte a tivesse inventado ele mesmo neste exato momento ou já a trouxesse consigo há muito tempo.” Como resultado, o poeta apresenta duas equações: “Quanto mais nova a imagem, mais confiável ela tem de ser a um só momento. Não se trata de inteligibilidade, mas de tornar algo novamente reconhecível, na linguagem, na escolha de objetos, na metafórica.” *

Ciente destas particularidades da poesia de Jan Wagner, a presente tradução procurou seguir discreta e humildemente a lição do poeta. Nas palavras de Michael Hamburger, o intraduzível ofereceu muitas vezes uma arte de possibilidades ao tradutor, que em muitos casos procurou reestruturar o jogo do original. A tentativa em dar sentido e forma em português às qualidades da poesia de Jan Wagner sem perder o original de vista e sem se manter demasiado colado a ele, deu-se de forma laboriosa e duradoura. Assumida como projeto, a tradução dedicou-se, primeiramente, a possibilitar que os poemas destas variações ajam no leitor brasileiro como poemas escritos em sua língua e, em um segundo momento, que esta edição bilíngue seja lida como interpretação e diálogo.

Atento à forma, o trabalho de tradução esforçou-se consideravelmente em manter a sonoridade do original, menos pela reprodução da métrica em iambos do que pela renovação da forma clássica, pelo tom despretensioso da sintaxe direta e simples e pela originalidade de imagens dos poemas de Jan Wagner. Alguns nomes populares de plantas e animais inexistentes ou sem tradução corrente na fauna e flora brasileira ou portuguesa, como o ambivalente “proteu” (espécie rara de anfíbio albino e cego, habitante dos cartes dináricos do sul da Europa, “grottenolm” em alemão), o cogumelo “morchella” (em Portugal conhecido também como “pantorra”) e o cão “dachshund” (o salsichinha no Brasil) podem estranhar o leitor brasileiro, mas a escolha, ora por um equivalente pouco conhecido em português, ora por manter o título em alemão, buscou obedecer o jogo enigmático do livro.

Caso extremo é o intraduzível “giersch”. “giersch” (aegopodium podograria), inço popular em toda a Europa, ao trazer a cobiça (gier) em seu nome, se esparrama através de aliterações por todo o poema, como uma praga que assalta o jardim, infesta o texto e a página à procura de uma forma que não a aprisione, mas lhe dê antes liberdade. Nestas páginas, “giersch” brota como “urtiga”, uma erva-daninha corriqueira, conhecida de todos, mas sobre a qual, salvo engano, não há sequer um poema em nosso cancioneiro tradicional. O intuito foi manter e dialogar com o que, na interpretação da presente tradução, implica o poema de abertura das variações: a infestação dos jardins pela praga aparentemente indefesa, mas incontrolável, atua como metáfora central para o assalto da literatura e de sua tradição formal pela linguagem viva e inventiva da poesia de Wagner. Na tradução, enquanto a cobiça se recupera em parte pela urgência, o chiado das aliterações e assonâncias em alemão é mantido em português por uma urtiga que se não cresce ao pé da cerejeira (ressoando o poema de Paul Celan “Ein Knirschen von eisernen Schuhe”), mas ao pé de um juazeiro; que se cortada, também retorna como culpa, e espuma e baba, até formar um bunker de resistência felpudo, repetindo-se e proliferando sonoramente não na fricativa [ ∫ ] de “giersch”, mas em nossa africada [ t∫ ] “urtiga”.

Seguindo o mesmo princípio, foram tomadas também outras liberdades em relação ao original, inclusive com total permissão e incentivo do poeta (este também tradutor). Em alguns momentos a liberdade se deu com as rimas, como no caso da rima entre “baum” e “boheme”, traduzida por “árvore” e “ar vadio”, a rima entre “kanaan” e “keinen” ou “mündern” e “mandarinen” traduzida respectivamente por “canãã” e “não” ou “estrangeiras” e “tangerinas”, e, por fim, a rima entre “helle” e “alle”, traduzida por “gargalhada” e “larga galhada”. Em outros casos, a liberdade vai de encontro ao que buscou o próprio poeta, mas só se realiza em uma língua alheia, como no maravilhoso metapoema “ficus watkinsiana”. Ao descrever a imagem da figueira que estrangula uma árvore hospedeira até que ela desapareça e em seu lugar sobre somente o contorno de uma árvore, o poema termina com a revelação “der baum,/der an der stelle eines baum trat” (a árvore que tomou o lugar de uma árvore) que na tradução para o português, quase como uma metasolução, deixa-se resolver muito bem com o verbo “suplantar”: “a árvore/que suplantou o lugar de uma árvore”.

É, portanto, deste modo dialógico que a tradução se encaminha, com certo êxito em alguns momentos, com menos em outros. Considerando a tradução como uma leitura à flor da pele, ou até subcutânea do texto, a edição destes poemas procura se realizar sem abdicar do novo e muito menos deixar de considerar o seu leitor. A proposta é que a poesia de Jan Wagner deite raízes e se alastre entre os leitores de poesia no Brasil, assim como a erva-daninha que abre estas variações. Afinal, a poesia de Jan Wagner que chega agora ao leitor brasileiro prova o que parece ter dito Dylan Thomas sobre a poesia como uma contribuição para a realidade. O mundo nunca será o mesmo desde que a ele for adicionado um bom poema.

* Wagner, Jan. “Über das Schöne in der Lyrik”, em: Schriften der Freien Akademie der Künste in Hamburg. 42, Hamburgo.

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