Posfácio a Percurso Livre Médio de Ben Lerner (por Maria Cecilia Brandi)

Edições Jabuticaba
9 min readFeb 17, 2021

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capa do livro por Helena Freddi e Bruna Kim

Mais conhecido por sua prosa publicada em vários países e idiomas, Ben Lerner é também — e primeiramente — um grande poeta. E são poetas os protagonistas de seus romances Leaving the Atocha Station (no Brasil, Estação de Atocha), 10:04 e The Topeka School (neste, um futuro poeta). Mean Free Path é seu terceiro e mais recente livro de poesia, publicado em 2010. Várias questões, como a insularidade dos estadunidenses, o lugar movediço da poesia, as citações artísticas e a tensão entre o mundo físico e metafísico; bem como o tom, ao mesmo tempo bem humorado e crítico, atravessam tanto sua obra poética quanto a ficcional e ensaística.

Em Percurso livre médio (título na minha tradução), a operação que Lerner faz com as palavras é particularmente inventiva e sofisticada, entrecruzando fenômenos científicos e linguísticos. O título do livro é um termo da física e designa a distância que uma partícula percorre até colidir com outras, quebrando-se continuamente e criando passagens. Em consonância com o título, os versos do livro muitas vezes também sofrem colisões: há choques de sentido de um para o outro, cortes, versos inacabados e retomados depois, fora de ordem ou até com mais de uma ordem possível. Há ainda, ao longo do livro, palavras que se repetem com sentidos variados, mais de um eu lírico e colagens de outras vozes (fragmentos de livros e canções, a reprodução da fala de um comissário de bordo etc.). Tudo isso suscitou muitos desafios tradutórios, em breve trarei alguns exemplos. Ben Lerner parece experimentar, na linguagem, imprimir um novo vigor à forma como nossos sentimentos e pensamentos se manifestam na contemporaneidade (quando somos bombardeados por tantas mensagens, imagens, desinformações): uma forma que é descontínua e assume o fragmentário como premissa para a dinâmica da vida. Tudo parece ser de algum modo intercambiável, exceto Ari, presente ao longo do livro, a ela dedicado. Mean Free Path é “em parte um poema de amor, ou um poema sobre a possibilidade de escrever um poema de amor contemporâneo” *, disse Lerner. Seria esse amor, como já disse Beckett, “um curto-circuito (…) ou, dito de outra forma, a mancha única, brilhante, organizada e compacta em meio ao tumulto da estimulação heterogênea” **? Este é também um tema que os versos de Lerner trazem à tona.

O livro começa com a “Dedicatória”, que é um poema, e depois tem as seções alternadas “Percurso livre médio” e “Elegias Doppler”. São duas de cada, com estruturas formais definidas, mas sem seguir um modelo métrico convencional. Os versos transitam com confusa naturalidade dos assuntos amenos (como a música) aos mais críticos (o estímulo exacerbado ao consumo, o valor da arte) e graves (a guerra do Iraque, a morte de amigos, o fascismo). Os temas, bem como os versos, aparecem e depois reaparecem, o que também caracteriza as conversas pessoais, com seus repertórios de preferência. Como diz um verso de John Ashbery, poeta muito admirado por Lerner, “one keeps coming back to that”.

Mais do que o caráter fragmentário, a meu ver a originalidade da linguagem de Percurso livre médio se deve às características arbitrárias que Lerner inventa para seus poemas, como se fossem uma forma fixa, de modo que a certa altura é possível que o leitor se pegue rastreando desordens, ambiguidades, rupturas etc. A partir de uma linguagem corrompida, ele constrói uma poética “com estrutura para balançar”, dando forma e expressão à instabilidade e aos paradoxos da vida contemporânea.

A partir de breves exemplos, vou discorrer um pouco sobre questões que proliferaram na tradução. Começo pela expressão acima, que em inglês é “Built to sway” e aparece três vezes no livro. Por que não optei por uma tradução mais curta do que “Com estrutura para balançar”? Na página 19 do livro, dois trechos seguidos são Wave to the cameras from the towers / Built to sway. Se “Built to sway” se referisse apenas às “torres”, a tradução poderia ser “Feitas para balançar”. Mas outras ligações são possíveis e potencializam as leituras do poema: We made love to in the crawl space / Built to sway, Reference is a woman / Built to sway. As pessoas balançam, as relações balançam, e talvez precisem, como as torres (penso em arranhacéus cuja tecnologia impede desmoronamento até em caso de terremoto), de estruturas sofisticadas para que não desabem. Essa pluralidade de combinações não existiria em português se eu dissesse “Feitas para balançar”. “Feitas” serviria apenas às “torres”. Busquei uma tradução que pudesse recriar esse efeito, ou seja, repetir-se nas diferentes ocorrências da expressão (sem flexionar o verbo), atendendo a combinações sequenciais e desordenadas nas páginas 18, 20 e 114. As torres, o amor, o assoalho, uma mulher, o poema, enunciados, um livrinho, um ditado… tudo isso pode ser “com estrutura para balançar”.

Outra questão foi o uso da palavra “wave”, que ora é uma “onda”, ora é um “aceno”. Como esta palavra aparece muitas vezes, neste caso mesmo variando a tradução a recorrência de ambos os termos subsistiu. A palavra “gender”, ao contrário, em inglês é semanticamente mais específica: refere-se necessariamente ao gênero sexual. Já em português, “gênero” pode ser sexual (“gender”, em inglês); pode ser artístico (“genre”), por exemplo, literário, musical ou pintura de gênero; e pode ser biológico (“genus”). Optei na maioria das vezes por dizer somente “gênero”, tornando a tradução — como são tantos termos do texto original — polissêmica. Só traduzo “genre” para “gênero literário” em uma ocasião (página 88) em que me pareceu relevante marcar a questão metapoética apresentada.

Algumas vezes o surgimento de marcas de formalidade, no meio de versos coloquiais, me levaram a suspeitar de que Lerner estaria “colando” o trecho de outro autor, suspeita que se confirmou, por exemplo, ao ler If you would speak of love / Be unashamed, versos de William Butler Yeats, que Lerner usa e desmembra em dois versos. Optei por também destoá-los dos demais em português, subindo o registro: Se queres falar de amor / Não tenhas vergonha.

Houve muitas ocasiões em que o verso em inglês tinha um sentido quando lido isoladamente e outro bem diferente quando ligado a outro(s). Buscar recriar com poeticidade essas viradas sintáticas, essas colisões, aspecto fundamental da obra (que diz respeito à linguagem e às suas implicações), foi a meu ver anos-luz mais importante do que ater-me à tradução dicionarizada de um termo.

Mas fui motivada a negociar e balancear continuamente as escolhas tradutórias, buscando priorizar alguns aspectos centrais na poética de Mean Free Path, tais como as ambiguidades dos versos, por vezes desordenados (valorando o efeito delas, mais do que o chamado sentido literal); o uso recorrente de certas palavras e fragmentos (central também na poética de outros poetas, como Eliot); e o uso de termos científicos (buscando os termos correspondentes em português e também recriando sentidos metafóricos a eles atribuídos). Outros aspectos inerentes aos poemas, tais como a musicalidade (ligada à regularidade métrica), a mancha gráfica e o tom coloquial também foram considerados e escalonados.

Há um trecho em que Lerner diz: Ari removes the bobby pins / I remove the punctuation, que acho muito bonito, pois os grampos de cabelo (pretos, de metal) de fato parecem, fisicamente, pontos de exclamação ou travessões com pontos finais nas pontas, que são bolinhas (de resina). Ambos — “bobby pins” e “punctuation” –, de algum modo, servem para interromper e controlar o desenrolar, seja ele dos cabelos ou do texto. Tirando-os, Ari e o eu lírico buscam uma soltura, um espaço para o embaraço dos fios, dos versos. E assim o livro se (des)enrola.

Outra questão desafiadora da tradução foi atentar para o efeito de versos perfeitamente intercalados, como na segunda estrofe da página 92, em que os ímpares se conectam e os pares idem. Pensei numa conversa, especialmente nas mensagens trocadas por Whatsapp, em que as falas se entrecruzam produzindo um terceiro discurso. Acontece que, por vezes, essa conexão também se dá na sequência dos versos e quis que em português isso também fosse factível. Por exemplo, se ligam os versos 6 e 8 da estrofe: Virga, or the failure of the gaze to reach / Across the lake in total dark, bem como o 7 e o 9. Mas também se ligam na ordem os versos 6, 7, 8 e 9: Virga, or the failure of the gaze to reach / By faking injury, like flares that bend / Across the lake in total dar / Missiles from their path. Inicialmente eu havia traduzido to reach para “alcançar”, pensado em “alcançar / O outro lado do lago”. Troquei para “chegar”, que me permite usar depois o artigo “do”: (…) chegar / Do outro lado do lago no breu total. Esse foi um dos ajustes que possibilitou também a leitura ordenada dos quatro últimos versos: Virga, ou o olhar não conseguir chegar / Fingindo uma lesão, como sinalizadores que / Do outro lado do lago no breu total / Desviam mísseis do seu percurso. Na mesma estrofe, há o verso Like rain that never reaches ground, que tem um ritmo bonito, característica que muitas vezes provém de uma métrica marcada. Neste caso, o verso é um tetrâmetro jâmbico, ou seja, é composto por quatro pares de pés (sílabas poéticas) átonos/tônicos. Podemos percebê-los lendo o verso em voz alta. Em português também marquei a métrica: Como chuva que nunca chega ao chão é um martelo agalopado, um verso decassílabo acentuado em 3, 6, 8 e 10. Além disso, há uma aliteração (chuva-chega-chão), que recria o barulho da chuva. Trago aqui esses exemplos pois talvez eles possam elucidar um pouco os tipos de operação que estão em jogo neste livro e, portanto, na sua tradução.

Quando li essa estrofe pela primeira vez, pensei na foto da capa estadunidense de Mean Free Path, que inspirou a ilustração desta capa brasileira. Vi o céu num degradê de azuis e algo que parece ser uma chuva fina e precisa, fotografada com bastante tempo de exposição. Ela parte das nuvens, talvez seja a chuva que nunca chega ao chão. Busco a referência da foto que diz: “U.S. Peacekeeper III reentry vehicles”. Ou seja, não é chuva, são veículos de reentrada múltipla que carregam ogivas radioativas. A foto foi feita quando o míssil estava sendo testado nas Ilhas Marshall, na Oceania.

A escolha dessa imagem torna ainda mais impactante o peso da guerra na vida, na sociedade estadunidense, em Mean Free Path. Pensando nos versos do parágrafo anterior (ou também vivendo no Brasil atual) sinto o quão próximos podem ser seres humanos, animais, armamentos. Sinto ao mesmo tempo a esperança salpicada (como diz outro verso do livro, flecks of hope): há sinalizadores que podem desviar mísseis, há pássaros que podem desviar predadores, nossos olhos podem ler e ver pequenas clareiras.

A militarização do mundo e as questões políticas destacadas na obra são caras a Lerner, jovem que cresceu numa família judaica esquerdista, no Kansas (EUA). Essa infância aparece sobretudo no seu terceiro romance, Topeka School. Ele estudou teoria política e fez mestrado em poesia na Brown University. Foi o mais jovem finalista do National Book Award, aos 36 anos, com Angle of Yaw, e o primeiro estadunidense a ganhar o Preis der Stadt Müenster für Internationale Poesie, na Alemanha.

A presença da música também é forte no livro. As interferências sonoras estão em vozes entrecruzadas, na força do canto de Nina Simone ou de Marvin Gaye, em um rádio que ficou ligado. Estão também em ruídos e barulhos, inclusive desagradáveis: falhas técnicas no sinal da TV, a música atonal, chamadas telefônicas, um avião caindo, fogos de artifício. Uma sequência de versos estronda elegantemente que não / sabemos distinguir cartuchos de munição de / aplausos. Abre nossos ouvidos.

A estrela morre e sua luz sobrevive. A estrela: no sentido astronômico ou figurado. Corpos celestes e artísticos. A poesia, que apesar dos pesares, sobrevive. Apesar das limitações de tudo que é real (inclusive da linguagem), do suicídio de um amigo, da guerra assombrando a vida (o piloto de caça vê na nuvem sua sombra), do passado não ter servido de aprendizado para orientar um futuro menos violento (avançará recursivamente ou de modo algum). Sobrevive a poesia, que não é um sistema / é um gesto cujo poder deriva do seu / fracasso e que, também como o ato tradutório, dança com suas próprias limitações.

* Trecho por mim traduzido, tirado do texto de Lerner publicado no livro A Broken Thing: Poets on the Line, org. Emily Rosko e Anton Vander Zee, publicado pela University of Yowa Press (2011).

** Em Murphy, na tradução de Fábio de Souza Andrade.

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