Os poemas homoeróticos de Whitman e a tradução como cover — por Eric Mitchell Sabinson
Os poemas homoeróticos de Cálamo foram publicados na terceira edição de Folhas de Relva, em maio de 1860. Dentro de um ano os Estados Unidos seriam tomados por uma guerra civil que duraria quatro anos e mataria aproximadamente 620.000 soldados. Walt Whitman, em versos que ele cortou das edições posteriores, imaginava laços íntimos entre homens de todas as regiões da América do Norte. Para o poeta, o carinho resolveria os problemas da liberdade, cuja existência dependeria dos amantes. O projeto literário de Cálamo se explicita no primeiro poema. Whitman está determinado a cantar apenas canções sobre a união entre machos. Pretende celebrar especificamente o anseio de ter companheiros.
Há uns dez anos um colega do Instituto de Estudos da Linguagem me emprestou uma tradução portuguesa da poesia de Walt Whitman, elogiando-a por ser menos enrolada do que as brasileiras. E realmente o verso da tradutora portuguesa parecia lúcido, depois da leitura de umas páginas, quando o ouvido já se acostumou à musicalidade lusitana. As traduções brasileiras ficam, às vezes, obcecadas com a palavra correta, que pode ser a palavra que o tradutor acha mais poética. Esquece-se de que qualquer tradução é sempre uma prótese colocada no lugar de algo que não serve: a ideia não é a de criar dentes ou membros individuais de grande esmero, mas somente a de fabricar uma dentadura funcional que não dê bandeira ou uma perna mecânica que não coxeie. Entretanto, há possíveis distorções no ato tradutório que não decorrem das excentricidades do tradutor individual, mas remetem aos recalques da cultura. O tradutor de Folhas de Relva, publicada pela Martin Claret, inventa uma namorada para beijar o poeta: “E, contudo, uma mulher de Manhattan que vive em festas me beija levemente nos lábios com amor robusto”. Acontece que nos versos de Cálamo apenas uma vez uma mulher é mencionada como parceira, e ela fica em casa quando o poeta sai com o homem de sua vida errante. São os homens que se beijam, e com uma certa frequência. Oxalá que as personagens masculinas na televisão brasileira tenham a mesma liberdade que tiveram os companheiros de Whitman há mais de um século e meio.
E os poemas que o leitor encontrará nas próximas páginas? Antes de comprar esse livro, ele precisa saber que o tradutor é nova-iorquino. Não há garantia de que os versos sejam, de alguma maneira, superiores ao produto nacional porque, afinal de contas, são também um produto nacional, mesmo que os ingredientes sejam importados, como uma garrafa de escocês Passport nos anos 70 ou uma engenhoca montada numa fábrica da zona franca de Manaus. Na adolescência tive a oportunidade de ouvir The Rolling Stones, Ike and Tina Turner e B. B. King ao vivo em Madison Square Garden. Contudo, se eu estiver em Pirassununga numa noite chuvosa, e uma banda local fizer um show cover, posso assistir de bom grado. Com certeza um tributo feito com amor será superior a um show com os velhos Stones, que estão caducando há décadas.
Ora, a tradução de um poema não é somente prótese. É também cover, um trabalho respeitável, que dá continuidade e renovação à cultura do passado. Quando releio meu trabalho, sei que estou no Brasil e estou feliz. Whitman entenderá. “Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo”.
Eric Mitchell Sabinson