O velho que não sente frio e outras histórias
Daniel Francoy
Trecho de O velho que não sente frio e outras histórias, de Daniel Francoy:
Amanhece e, sobre as escadarias da igreja, há o que resta de um cobertor queimado. Onde a miserável dormia antes de ter o corpo consumido pelas chamas, há uma mancha escura, formando um desenho que poderia interessar àqueles que apreciam e acreditam no teste de Rorschach.
Portanto, eu agora coloco quem lê diante de uma mancha de carvão, pergunto o que vê?, e ofereço as seguintes alternativas, todas marcadas por um escancarado lirismo:
( ) a silhueta de uma borboleta calcinada, embora de proporções humanas;
( ) o perfil de uma árvore durante os meses da seca mais severa;
( ) o percurso do leite derramado de uma jarra a uma altura de dois metros.
Feita a escolha, eu revelo algo como um ardil, exibindo a natureza de um deus que busca criar um labirinto onde todas as possibilidades induzem ao erro, ainda que se trate de um labirinto em linha reta: a velha e conhecida rua percorrida inumeráveis vezes no caminho de volta do trabalho, a calçada onde aprendeu a diferença entre uma rosa e um cravo e entre um cravo e um crisântemo, o caminho de tal modo acidentado que um passo em falso sempre é possível, pois agora pergunto e acuso:
Não percebe que o que tem diante de si é a mancha deixada por um corpo calcinado?
Ignora que foi aqui que uma criatura humana ardeu em labaredas até que a vida dela se estiolasse?
Não compreende que aqui, como em todas as outras calçadas, há um indício de uma inominável violência, e que, constatada a violência, é incontestável a conclusão de que há uma vítima e um carrasco?
Você consegue distinguir uma vítima de um carrasco com a mesma presteza com a qual distingue uma mentira de uma verdade?