O princípio da saudade,
ou uma topografia

Edições Jabuticaba
7 min readJan 10, 2021

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por Guilherme Gontijo Flores

aquela sensação de algo que se prolonga no ar, criando uma ideia de mundo em suspensão do tempo, dos ruídos, dos ventos. (Daniel Francoy)

“O amor precisa ser reinventado”, dizia o moleque Rimbaud em sua Estadia no inferno, e ninguém nunca soube bem por onde começar o processo, embora tantos o tentem a cada dia, tateando a torto e a direito, até porque o não-saber do amor parece ser sua peça chave. L’amour est à reinventer, on le sait. “O amor precisa ser reinventado, a gente sabe.” Sabemos que é preciso reinventá-lo, sim, mas o que é aquilo que não sabemos por onde reinventar? Não sabemos. E no entanto precisa ser reinventado esse quê que não sabemos; talvez porque não sabê-lo seja o passo necessário ao sonho da reinvenção. E o que seria, afinal, reinventar? Se formos à etimologia do latim, invenire significa topar com algo, seguir até encontrar algo (in+venire); não propriamente a invenção ex nihilo, mas a invenção como encontro fortuito; nesse sentido, inventar um poema, mais do que criá-lo, é encontrá-lo onde estiver. Reinventar, então, seria reencontrar o que não propriamente se perdeu, mas esteve o tempo todo à espera. Não à toa, o verbo que fundava toda a poesia trovadoresca era precisamente trobar, encontrar algo, a canção a ser cantada, o amor cortês que cortejasse o ser amado. Nessa poesia amorosa trovadoresca, trobar era encontrar o caminho do poema no amor, e do amor no poema, ou talvez mais precisamente: encontrar o amor do poema, fazendo um poema de amor, onde quer que eles estivessem. Seria o caso, então, de pensarmos uma topografia do amor? Uma topografia do poema? E essa topografia tentaria descrever seus ambientes, sua constituição afetiva, ou se limitaria a narrar cada um dos topoi que constituem o poema? Certamente a topografia como lista de topos é um dos piores lugares da crítica literária; porque transforma o lugar do poema, e o lugar que é o poema, em meras coordenadas dos lugares comuns retrabalhados. Não é esse topos que nos move hoje, embora esteja na topografia necessária. A topografia do amor do poema é aquela que tenta entrevar que lugar tem lugar no acontecimento do poema. Por certo, é uma paisagem instável, um jogo bastante perigoso (se usarmos o título do primeiro livro de Adília Lopes), que se constrói durante a leitura/ audição do poema e que pode, quem sabe, perdurar além do texto, desdobrado na vida. O lugar que tem lugar no acontecimento do poema é o móbile de qualquer poeta, é o que resta a encontrar e reencontrar, como o amor.

Daniel Francoy vem traçando um percurso impressionante e discreto na poesia brasileira. Discretíssimo, talvez, por ter publicado seus dois primeiros livros — Em Cidade Estranha/Retratos de Mulheres (Editora Artefacto) e Calendário (Editora Artefacto) — em Portugal, para só em 2016 estrear de fato no Brasil com Identidade (Editora Urutau), que lhe rendeu o prêmio Jabuti, numa espécie de segunda estreia, reinvenção de si no próprio lugar. Nesse percurso, é possível ver uma obsessão com as tensões entre a paisagem subjetiva da memória, da fantasia, do devaneio, de um lado, e os lugares concretos por onde passa o poeta/eu-lírico (Francoy volta a borrar essas fronteiras sempre frágeis) num movimento que lembra uma espécie nova de flaneur pós-drummondiano. Em sua poesia, o lugar que surge não é o desfile do dandy que descobre a cidade em suas minúcias enquanto se revela um pouco acima, um pouco fora, da modernidade que o cerca e o constrói. Não, Francoy caminha num mundo precário, num mundo caduco que, querendo ou não, é preciso cantar. Mais precisamente, eu diria que é preciso inventar o mundo caduco a ser cantado; sobretudo num momento em que, cada vez mais, é a experiência virtual que rege a partilha coletiva dos espaços; enquanto as ruas das cidades vão sendo esvaziadas, nos centros, nos comércios tradicionais de sapateiros, lanchonetes, chaveiros etc. É talvez aqui que se acha o lugar na sua poesia, ou, retomando o que formulei, é aqui que tem lugar o lugar da poesia de Francoy, num gesto que poderíamos denominar, na falta de termo melhor, como um princípio de saudade. Penso aqui nos dois sentidos da expressão: é um princípio de saudade, porque é uma saudade inicial daquilo que aos poucos se perde, e não de uma perda já dada; sendo assim, o princípio dessa saudade é também um embate político e poético de como conviver com o que se perde, enquanto se perde, para dizer se é possível superar a saudade pela linguagem, pela construção no poema do espaço que desaparece da cidade. Mas também é um princípio de saudade como um preceito, aquela lei de saudade que, vendo a precariedade de tudo, a inexorabilidade do fim, se anuncia como saudade antes mesmo da perda, porque percebe na perda futura do mundo também a perda de si. Se o primeiro princípio de saudade pode ecoar poemas como “Elegia Inútil”, de Manuel Bandeira, em que vemos o poeta pernambucano lamentar a mudança burocrática dos nomes das ruas do Rio de Janeiro; o segundo princípio guarda aquela melancolia de Carlos Drummond de Andrade em poemas como “Elegia 1938”. Vejamos um trecho que lemos em “22 de janeiro de 2017”:

E é com desolado encanto que vejo Ribeirão Preto, quando transformada em lugar literário, aproximar-se dessa memória inventada, confundindo-se com as cidades e os cenários acima nomeados. Exemplo: o supermercado Extra da avenida Presidente Vargas, mais precisamente a sua praça de alimentação. Um restaurante japonês, um Girafas e um Burger King. Estão sempre às moscas. A praça de alimentação é toda de paredes de vidro e, enquanto se come, é possível observar o vento encarnado de poeira dando voltas lá fora, ao redor dos telhados de uma cidade sem qualquer história.

O lugar que tem lugar na poesia de Daniel Francoy, o amor que se reinventa e se reencontra no poema, pode ser então visto como uma topografia do princípio de saudade; ou melhor dizendo, o duplo princípio de saudade organizado enquanto topografia: cada canto da cidade pode ser revirado e transformado em ponto ideal do poema, não por sua idealização, nem por seu fim, mas porque sua iminência de fim, ou seu estado de memória adiantada, o põe em relação com a finitude do humano; todo terreno baldio contém, ao mesmo tempo, o germe de um edifício cinza e a memória do que foi (suponhamos bosque, suponhamos casa demolida, tudo é outro) num movimento de devir que revela seu rastro apenas àqueles que reconhecem no devir sua própria condição. No entanto, essa tensão que aparece em sua poesia pode se diluir, passar rapidamente, estar implícita, elíptica, paratática; são muitos os golpes de visão em sua obra. E aqui entra a força nova desta invenção dos subúrbios.

De 20 de junho de 2013 até 25 de dezembro de 2017, o livro reúne quatro anos e meio de textos que, se à primeira vista parecem anotações — um diário — , logo tornam-se verdadeiras crônicas, ou poemas em prosa em elegia a um mundo caduco, com o qual o poeta se identifica e estranha constantemente. Mas não é um diário, ou não precisamente um diário, porque aqui está retirado o tempo cronológico. Em vez de seguir os dias do ano, Francoy estabelece uma cronologia em espiral, que se organiza por meses, ou mais especificamente, pelos dias do ano, fundindo os anos. Assim, 22 de janeiro de 2017 vem antes de 24 de janeiro de 2016, e é a temporalidade dos períodos do ano, de suas estações, repetições climáticas, repetições nas práticas do dia a dia, é o movimento regular do ano como ritmo de base que regula esses poemas cronísticos. Nessa temporalidade, o que se perde, ou o que dá lugar ao lugar do poema como princípio de saudade, é o que se repete em sua finitude, ou seja, aquilo que não acaba de uma vez, mas que não cessa de acabar, seja pela reminiscência do sujeito, seja pela condição de precariedade que envolve determinados espaços. Os dias ganham afinidades pelos seus lugares no calendário, mais do que por sua sequencialidade factual, e assim vemos as obsessões do poeta se organizarem de modo por vezes espantoso, ao longo dos anos. O que passa a ser ainda outro ponto deste livro: não só crônica, não só poema em prosa, não só diário, ele também é o contraponto, o outro modo de organizar a topografia que vemos nos poemas. De algum modo, percebemos aqui, pela fragilidade do eu que assina cada texto, pela sua exposição geral entre encantamento e cansaço, a máquina do poema, a fábrica do poema, até onde ela fracassa. Nisso parecem ecoar os versos de Waly Salomão, em “A fábrica do poema”:

Vão-se os anéis de fumo de ópio

E ficam-me os dedos estarrecidos.

Metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros

Sumidos no sorvedouro.

Quando acordamos da poesia de Francoy neste A invenção dos subúrbios, podemos pensar que ficaram apenas os dedos estarrecidos, desprovidos do poema que a máquina anuncia — assim ficam talvez aqueles que confundem o poema com o verso — ; no entanto é aqui, mais do que em qualquer outro lugar que, inventando os subúrbios em que vive e escreve, em que trabalha e passeia e descansa, Daniel trova seu poema, reinventa seu amor, que assim, reinventado, permanece no leitor por se reinventar.

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Meudium das Edições Jabuticaba, pequena editora com foco em poesia, prosa e ensaio.

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