Imperfeita perfeição

Edições Jabuticaba
10 min readJan 6, 2021

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Luís Bueno

Em 1866, a vida de Gerard Manley Hopkins (1844- 1889) estava para mudar radicalmente. Aos 22 anos de idade, ele estudava Letras Clássicas no Balliol College, em Oxford, onde era aluno conhecido por seu brilho intelectual — a pon- to de quase duas décadas depois, um de seus mais famo- sos professores, o influente crítico Walter Pater, perguntar a amigos onde tinha ido parar aquele estudante brilhante, de que não se esquecera. Naquele ano, ele vivia o ápice de uma crise religiosa profunda, que se encerraria com a decisão de se converter oficialmente ao catolicismo. Pode não parecer, mas esta foi uma decisão radical, que mudaria drasticamente as perspectivas de vida do rapaz. Ele teria que brigar para manter-se estudando em Oxford, já que os não anglicanos não eram aceitos em seus vários colleges. De qualquer forma a continuidade de sua carreira intelectual dentro da instituição já estava comprometida.

Nesse ano de 1866 ele escreve o poema “Hábito da perfeição”. Nele, já se mostra um desejo de, para além da simples conversão, abraçar a vida religiosa. A ideia de perfeição no poema confunde-se com a de contenção. A conten- ção dos gestos, mas também a dos sentidos. Mas, sob essa contenção, ou ainda, antes dela, o que se enuncia é o que atrairia, em princípio, o espírito desse eu-lírico. É assim que o silêncio é definido como música, o jejum é o prazer que aparece depois da menção ao prazer do vinho, e a pobreza vem vestida de noiva, trazendo esse hábito não tecido mas, ainda assim, hábito. É como se uma vontade forte se colo- casse diante de uma inclinação também forte e só pudesse se exprimir no contraste com a inclinação para a entrega aos sentidos que teria que ser vencida. A perfeição, afinal de contas, não é fácil.

Hopkins mergulharia radicalmente na busca dessa ideia de perfeição. No plano pessoal, ele decidiria se tornar padre, escolhendo a ordem que lhe parecia a de mais rigoro- sa disciplina, a dos jesuítas — decisão radical numa Inglaterra onde a Companhia de Jesus tem uma história terrível, que começa com a perseguição, tortura e execução de padres je- suítas durante o reinado de Elizabeth I, e uma fama muito negativa, para dizer o mínimo.

No plano da poesia sua decisão seria ainda mais radi- cal. Sendo a manifestação mais desenvolvida de um espírito oposto àquela ideia de perfeição, a atitude correta pareceu ser a de simplesmente abandoná-la. E assim ele parou de escrever versos, num longo jejum poético que só seria inter- rompido em 1875.

Toda a trajetória de Hopkins como poeta, até sua morte precoce, em 1889, aos 45 anos, foi a da busca da per- feição: o que mudou foi sua compreensão do que seria a per- feição. No decorrer daqueles longos anos longe da poesia, ele não largaria a pena nunca. Em diários e ensaios escritos para si mesmo, como notas de estudo, desenvolveria uma complexa visão do que seria a beleza, do que seria a vida religiosa, do que seria a poesia, do que seria ser o que cada um é.

O resultado desse longo processo é uma poesia de tirar o fôlego, diferente de tudo o que se escrevia naquele pe- ríodo — nunca é demais lembrar, um momento riquíssimo da poesia inglesa, que assistia, ao mesmo tempo, às experiências de Tennyson, de Swinburne, de Robert Browning, dos Pré- -Rafaelitas e de William Morris, para ficar só em alguns no- mes –, com uma sintaxe e um vocabulário imprevistos e uma sonoridade diferente sobre uma versificação que desnorteou os poucos leitores que teria. A esse respeito, basta dizer que o primeiro de seus poemas maduros, o monumental “The Wreck of the Deutschland”, escrito para sair na revista da Companhia de Jesus, The Month, acabou sendo recusado pelo editor, que declarou nem sequer saber como lê-lo em voz alta.

A muitos, portanto, a nova perfeição de Hopkins pa- receu bastante imperfeita. Ele, aliás, gastaria muita tinta para explicar que era preciso procurar a perfeição de sua poesia naquilo que parecia ser sua imperfeição, como o conceito de pé métrico, a forma de combinar os acentos numa concep- ção própria de ritmo, por exemplo. E o enigma sobre o que vale a pena a gente se debruçar ainda hoje é o de em que consistiria a nova perfeição entrevista pelo poeta, aquela que lhe permitiu romper o silêncio que ele elegera como ideal.

Augusto de Campos afirmou que para traduzir Hopkins precisou exercitar uma “suspensão da descrença”, ou seja, para aproximar-se da poesia de fundo religioso que ele escrevera, fora preciso abrir mão temporariamente de seu ateísmo. O que eu me propus como tradutor foi uma outra atitude, a de tentar compreender a crença de Hopkins, a de me esforçar para entender o que uma poesia tão sensorial, tanto nas imagens quanto na sonoridade e na visão de mundo, poderia ter a ver com a disciplina jesuítica. O que aconteceu com a incompatibilidade que o poeta via entre poesia e vida religiosa em 1866?

Aconteceu que essa incompatibilidade era mera aparência. Procurando rigor e disciplina, ele encontraria na doutrina jesuítica uma aceitação dos sentidos e da vida no mundo, não fora dele, que era a de um outro hábito. Como se sabe, a Companhia de Jesus foi idealizada por um solda- do, Inácio de Loyola, o que leva toda gente a pensar numa ordem que valoriza a disciplina, o respeito à hierarquia — o que é verdade. Mas também é verdade que o soldado é um homem do mundo, um homem prático, um homem de ação. Por isso, os jesuítas não constroem mosteiros, saem em missão. Inácio de Loyola, em seus diários, chega a descrever uma experiência única que teve. Certa feita, sentado junto à margem do rio Cardoner, em meio à natureza, e sem deixar de vê-la, experimentou uma compreensão aguda das coisas divinas — e das coisas profanas — que só pode ser identifi- cada com uma experiência mística, exatamente aquela que, em diferentes tradições, só é possível pela superação da ex- periência física e a ativação de uma visão que é puramente interior. Santo Inácio não: ele viu o que viu com os olhos mesmo, compreendeu o que compreendeu estando em ple- na posse de sua consciência. E formulou uma pedagogia, expressa nos Exercícios espirituais, calcada na concretude e na imaginação visual.

Por outro lado, desde a adolescência, Hopkins se interessara pela ideia de originalidade. Mas a originalidade para ele nunca esteve ligada ao mito romântico do gênio. Para ele, a originalidade era uma espécie de fatalidade a que os indivíduos — e não somente os humanos — estariam condenados. Sendo indivíduos únicos, é natural expressar essa individualidade que, sendo única, só pode ser original. Nas férias de 1872 ele estava na Ilha de Man quando leu um filósofo que teve para ele o valor de uma revelação: Duns Scotus (c.1274–1306). Scotus era um frade franciscano — e eis aí outra ordem, anterior à Companhia de Jesus, que se dedicava à ação e não principalmente à oração — que, dentro da tradição escolástica, criara uma teoria da individuação.

Num outro plano, ele continuaria a estudar com vi- gor a tradição da poesia inglesa desde suas origens, atento para um tempo em que a poesia ainda era uma experiência oral e não do mundo do livro. Prosseguiria também seus es- tudos de grego, latim e literatura clássica — afinal, como diria ele em carta a um amigo, era preciso estudar os clássicos para fazer diferente. Fez seu noviciado no país de Gales e estudou a língua gaélica e também sua versificação, baseada não em acentos ou duração, mas em recorrências sonoras, em aliterações. Chegou mesmo a escrever alguns poemas nessa língua — assim como em latim e grego.

A perfeição que sua poesia madura atinge é uma complexa mistura de tudo isso, ou seja, de tudo o que o in- divíduo Hopkins era: um vitoriano que fora aluno de Pater e aprendera a observar a beleza da natureza e a beleza da arte e um homem de fé que encontrou na religião um sentido, ainda que tortuoso. Não é por coincidência que essa poesia se volte para a natureza constantemente, sobretudo para os seres diferentes — o falcão que voa de forma única, as flores de múltiplas cores em combinação, os peixes com pintas ir- regulares. E também não é coincidência que uma espirituali- dade da concretude se manifeste, aquela que diz com todas as letras, em “A cotovia cativa”, que os ossos é que sustêm a alma sobre a terra e isso não a diminui ou aprisiona.

É claro que essa perfeição não era estanque e, muito menos, definitiva. A perfeição nunca é. A solidão corroía os esforços. Pense-se que Hopkins teve, literalmente, menos leitores que Brás Cubas afirmou que teria: apenas três ami- gos dos tempos da juventude acompanharam sua produção, todos eles poetas, de maior ou menor sucesso em seu tem- po: Robert Bridges — que se tornaria poeta laureado e edita- ria os poemas de Hopkins em 1918 –, Coventry Patmore e Richard Watson Dixon. Para o primeiro ele chegou a dizer em carta que a arte só fazia sentido se fosse conhecida, se atingisse outras pessoas. Sua poesia, portanto, estava fadada ao fracasso.

E foi assim que a mesma linguagem de riqueza delirante que, contente, havia cantado a perfeição da imperfei- ção das coisas da natureza passaria a dar voz à imperfeição da perfeição, à revolta, à dor de alguém que fracassa apesar de todo o esforço despendido, alguém que precisa cultivar sobre todas as coisas a paciência, alguém que interpela Deus, a quem sempre buscara, para pedir algum consolo, algum sentimento de realização. O último poema que ele finalizou, datado de 22 de abril de 1889, dedicado a Robert Bridges, é ainda uma tentativa de dar uma explicação, de justificar seu esforço, um movimento que ele fez em várias cartas envia-das a esses amigos.

É dessa forma que a poesia de Hopkins continua a nos atingir. Como uma aventura na linguagem que ao mes- mo tempo é a aventura existencial de um homem para quem a fé era fundamental. Pelo menos foi assim que me atingiu. E como estas traduções têm idade — foram feitas entre 1987 e 1991, portanto há mais de 25 anos — talvez faça sentido entrar um pouco no campo do testemunho. Embora entrem na história impressa da tradução de Hopkins no Brasil apenas agora, foram feitas quando não havia quase nada: apenas uma tradução anônima publicada na revista Festa nos anos 30, e outras isoladas que integraram antologias de poesia in- glesa, feitas por Bezerra de Freitas, Paulo Vizioli, Péricles Eugênio da Silva Ramos e José Lino Grünewald, além de um poema mais longo traduzido por Augusto de Campos e publicado no Suplemento Literário do Estado de São Paulo nos anos 60 e depois incluído no volume VersoReversoControverso. Apenas enquanto o meu trabalho se fazia ou já se encontra- va em fase final, saíram os volumes com traduções de Aíla de Oliveira Gomes, publicado em 1989, e do próprio Augus- to de Campos, em 1991. Mas não tiveram impacto sobre o trabalho. O primeiro porque estava distante demais da ideia de tradução e da leitura de Hopkins que me interessavam. O segundo, porque apareceu quando a visão que orientou estas traduções já estava formulada e as traduções estavam concluídas.

Em 1984, eu era estudante do primeiro ano de graduação em Letras quando me caiu nas mãos o livro Poesia-experiência, de Mário Faustino. Foi ali que pude ler pela primeira vez alguns poemas de Gerard Manley Hopkins, que me fascinaram de imediato tanto pela sonoridade quanto pela dificuldade: “Como posso achar tão lindos esses poemas, se mal os entendo?” foi a pergunta que me fiz de imediato.

Acabei convivendo horas com eles, procurando lê- -los, com a ajuda das traduções em prosa do poeta — que completavam a curta história da tradução de Hopkins àquela altura. Mas eram muito poucos esses poemas, três ou quatro, e eu definitivamente queria mais. Por sorte, a biblioteca da Unicamp, onde eu estudava, tinha uma edição da Penguin dos Poemas escolhidos — naqueles anos anteriores à internet, não era fácil conseguir livros importados.

A poesia de Hopkins me levou de vez para dentro da poesia. Eu já havia decidido prestar vestibular para o curso de Letras, depois de um curso e uma rápida carreira como técnico em eletrônica, exatamente por causa de minhas lei- turas de poesia, pelo desejo de compreender melhor como funcionava essa máquina imprevisível que é o poema — o que a gente, aliás, passa a vida toda tentando. Mas foi a partir do encontro com Hopkins, procurando compreender seu enigma, que, por exemplo, comecei a me interessar por ver- sificação, tanto do português como do inglês.

Hopkins é um poeta tão radicalmente poeta que pro- voca esse desejo de se conhecer melhor a poesia, sua técnica, os caminhos de seu sentido, as vozes de outros poetas, os seus limites, seus constantes desdobramentos. É uma espé- cie de curso compacto de poesia, mas não um curso que se faz passivamente, já que não nos dá chaves de leitura — nós é que precisamos procurá-las.

Estas traduções foram feitas nesse espírito. O de procurar apresentar textos em português que atingissem al- gum tipo de perfeição imperfeita. Os procedimentos poéti- cos que o leitor localizará nelas não são os mesmos que o poeta utilizou. Afinal, mais do que duas línguas diferentes, são dois sistemas poéticos, duas visões de poesia, duas lon- gas histórias que não se correspondem diretamente. Mas as rimas pouco usuais, o uso de certos metros pouco comuns em português, como o verso de 13 sílabas, a criação de pa- lavras e uma série de outros pequenos estranhamentos bus- caram construir uma experiência poética diferente em por- tuguês, e diferente porque nascida de um poeta estrangeiro e concretizada por um tradutor imerso na tradição poética brasileira.

Ainda que seja um conjunto pouco extenso, de 19 poemas, atravessa toda a produção do poeta. São dois poemas da juventude, 15 da maturidade, escritos depois de 1875, e dois fragmentos, um em inglês e o outro em latim, um dístico. Naquela época (e ainda hoje, na verdade) eu tinha a convicção de que a tradução é sobretudo um exercício de escrita. É esse exercício que este livro oferece ao leitor, depois de 25 anos da defesa da dissertação de mestrado que foi seu resultado imediato.

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Meudium das Edições Jabuticaba, pequena editora com foco em poesia, prosa e ensaio.

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