Dois contos de Gabriela Guimarães Gazzinelli
— do livro “A gaveta e o abismo: contos de terror e burocracia”
Floreios
O guarda-chuva descia planando, com graça e espírito. Começara a trajetória na janela da sala de estar do apartamento no sexto andar. Era um guarda-chuva estampado, desses baratinhos importados da China, que se compram do vendedor de rua para se amparar das gotas espessas que começam a se adensar numa tarde de verão. Não o qualificaria de elegante ou duradouro. O plástico da alça, por exemplo, tinha se rompido na semana anterior. Algumas de suas hastes haviam se entortado sob vento mínimo. Contudo, o misto de fragilidade e ligeireza parecia acentuar a beleza do movimento fulgurante da descida, que devolvia a luz tropical do dia ainda sem nuvens. A estampa de rosas que florescia no tecido alumiava a queda livre.
Percorria esse caminho pela pressa da senhorita dona. Ela partia furtivamente da casa dele de manhãzinha. Acalentava as alegrias silentes do amor e da entrega, esquecida de tudo. Inclusive do guarda-chuva. E o boletim meteorológico da véspera prenunciara um toró. Voltou atrás. Pediu pelo interfone que ele jogasse o guarda-chuva para evitar a viagem ao sexto andar. Antes de deitá-lo ao ar pela janela, atendendo ao pedido impaciente, ele o abriu para amortecer a queda de cerca de vinte metros. Caía, pois, morosamente, como se estivesse a flanar; se desviava, a seu bel-prazer, da linha reta entre o sexto andar e o térreo. Esquivando-se ora para a esquerda, ora para a direita, voltejava, realizava quase piruetas. Exibia-se sob a luz da manhã, em ângulos distintos. Como se o movimento em linha convoluta e floreada fosse ordenado por uma veleidade antes que pelas invisíveis leis da f ísica. Vagava entre avencas e begônias nas jardineiras dos outros andares, parecendo suspender sua queda ante uma ou outra janela. O que será que o detinha? O que espiava por entre as venezianas verticais? O que adivinhava em tal ou qual florada?
Por fim, reforçando a impressão de que cumpria, a seu modo, o desígnio de uma vontade superior (a do homem à janela do sexto andar, quiçá), depositou-se com toda leveza na mão que se lhe estendia. O guarda-chuva admirou-se. A mãozinha acobreada era um mimo com seus dedos esguios e longos e suas unhas naturalmente ovaladas, semilúnios nascendo em suas bases. Apreciou-a antes de se entregar definitivamente. Nos últimos instantes do percurso, encantou-se com a ideia de que o firmamento se manifestasse nas unhas cuidadosamente aparadas de uma mãozinha como aquela. Entregou-se numa queda ínfima e suave, quase onírica, dilatando-se o tempo, como nos filmes românticos em preto e branco, sob o silêncio que pedia uma música improvisada. O sopro mais tênue alçou o guarda-chuva por um instante no momento mesmo de sua chegada à concha da mão, o que contribuiu para o pouso de delicadeza incomparável.
Airosa e cruel, porém, ela não fez muito caso do guarda-chuva que tanto se esforçava em expressar seu lirismo urbano. O guarda-chuva, coitado, esperava no mínimo elevá-la, suspender por um intervalo as preocupações com a vida que vinha levando. Mas, ultimamente, senhorita não andava muito dada a epifanias. Ignorou a beleza da estrutura metálica da copa do guarda-chuva e a imitação vegetal em seu dossel. Sem hesitar, destrancou o anel de fecho. Em seguida, desarmou o aramado de raios concêntricos, deslizando o corredor pela haste central. Recolheu os aros retrácteis e, com um gesto econômico, dobrou suas pregas floridas. Rebeldes, os pedaços de lona tentavam escapar da circunferência estreita da base em que se encaixavam as pontas estelares dos raios. Aprisionou-os com a estreita faixa com velcro costurado em suas extremidades. Meteu-o, em seguida, na cavidade escura de uma bolsa entre moedas, carteira, canetas, caderno, livro e, pasmem, humilhação das humilhações, um rasteiro estojo com escova e pasta de dentes.
O guarda-chuva acomodou-se entre os objetos avulsos em estado de absoluta desolação. Ele se esmerara tanto em sua dança umbeliforme. Não era um mero guarda-chuva, desses que só servem parar obstar as intempéries; tinha algo de feérico, tinha sentimentos. Queria imprimir um traço de beleza nos obscuros corredores da memória. Merecia uma ode, um encômio, um panegírico, e não aquele manuseio mecânico e desalmado. Não compreendia a indiferença com que deparara ao se depositar no oco da mão, que, em retrospecto, já não lhe parecia tão bela.
Mas foi esse o desfecho do guarda-chuva bailarino. Com a mesma distração com que o tinha esquecido, ela tomou o caminho até a parada de ônibus, evocando a tabela de horários da linha circular Norte-Sul. Seguia a passos apressados, sem reparar nos reflexos celestes nas poças da chuva que tinha caído na véspera. Insensível como um volume desatualizado do Catálogo Telefônico. Ignorava que suas mãos tivessem algo de noturno, em cada unha uma luazinha repontava por trás da cutícula.
Mesmo que chovesse
Foi assim. Implicaram com ele quando bateu o pé que não queria ter carro. Preferia ir a pé para o trabalho. Ou, então, de bicicleta. Nos dias de chuva, apanharia o ônibus como outros bilhões de mortais. Não era assim nada de outro mundo. Sentia-se bem nas ruas. A cada pequena caminhada, a cidade oriental propiciava intervalos de meditação. As cores dos sáris das mulheres e das meninas iluminavam os dias mais cinzentos. Ia descobrindo, em seu itinerário, comércios de uma porta, nos quais pairavam nuvens de temperos. Animais entremeavam-se às pessoas, ditando ritmos desencontrados às ruas.
Na repartição, cada dia, despachavam um novo colega até ele para tentar convencê-lo de que tal situação não convinha. Sucederam-se o ministro-conselheiro, o secretário do embaixador, a adida cultural, o agente de portaria, a vice-cônsul, o assistente de chancelaria afabilíssimo, o motorista-arquivista-capelão. Expunham argumentos, apelavam para sentimentos. O trânsito era selvagem, ele poderia ser atropelado. O calor era insuportável, as caminhadas logo se tornariam desagradáveis. As ruas eram sujas, poderia pegar alguma estranha enfermidade. Se por uma desgraça ferisse uma vaca sagrada, poderia ser linchado pela turba. Perderia muito tempo no trajeto. Os macacos eram perigosos, poderiam lançar coquinhos em sua cabeça. Havia ainda a questão candente de representação. Como se apresentaria nas recepções e nos coquetéis? A embaixada tinha uma imagem para manter, e todos os seus funcionários deveriam contribuir para tanto. Razões sem conta para render-se e comprar um veículo multiplicavam-se no correr dos dias.
Mas ele seguia inflexível, ia levando a vida como gostava, cheia de pequenos prazeres e descobertas. As caminhadas permitiam imiscuir-se na multidão. A caminho, a arquitetura da cidade se lhe ia revelando. O itinerário era um pouco diferente a cada vez. Novos ângulos abriam-se nas pausas imprevistas pelas ruas. Ao repousar os olhos no horizonte em tal ou qual altura de um quarteirão, avistava uma cúpula que antes estivera oculta. Um prédio insuspeito tornava-se subitamente belo, quando levantava o olhar para seus andares superiores. Sentia-se um pouco mais livre e aprendia a gostar da cidade. Era conhecido em seu bairro. Mesmo nos corredores mais recônditos do mercado. E o exílio ia se tornando tolerável. Não fosse a insistência dos colegas...
A data nacional chegava e o burburinho tornara-se incessante. Naquele ano, a data cairia num sábado. Como ele faria se chovesse? O transporte público era escasso nos fins de semana. Mais importante, sugeriam que não convinha chegar a pé ante as autoridades locais e todo o corpo diplomático. As instâncias superiores não apreciariam nem um pouco se alguém como ele, conselheiro, que ocupava posição relativamente importante, se apresentasse de forma indigna na efeméride nacional. Ele não perdeu a fleuma. Sorria com benevolência e furtava-se de dar quaisquer explicações. Que não se preocupassem, não faria má figura. Mesmo que chovesse. Mas não choveu.
No dia, ele, que era tão pontual, atrasou-se um pouco. Algumas senhoras já flanavam pelas aleias do jardim da Embaixada. Tagarelavam, flor a flor, sobre tudo e nada. Entremeavam-se entre elas os senhores, trazendo aperitivos e canapés. O sol ascendia implacável na abóboda celeste. Derramava seus raios sobre vestidos e casacas, revelando matizes e padrões. Certas convidadas protegiam a delicada cútis sob chapéus de aba larga e cores estivais. Chapéus com flores de seda cuja frivolidade de pétalas e sépalas, em meio a ramos pomíferos, nunca deixava de espantar os garçons silentes, que circulavam no dédalo de arbustos. Uma brisazinha marulhava a flora polifônica. Não fazia por menos a banda, em galantes uniformes, que tocava um jazz levinho, que se harmonizava à petite musique da folhagem.
Nem mesmo dez minutos haviam se passado, e todos já especulavam se alguma das muitas tragédias anunciadas tinha se dado. Inclinavam as cabeças inconformados. No fundo, ele era um bom colega. Não merecia isso. Cada qual se envaidecia um tantinho da própria clarividência naquele caso. Há muito, tinham prenunciado as consequências de sua excentricidade insensata. O triste era que o caso se desse logo hoje, dia tão sensível. Ah, se tivesse dado ouvidos aos bons conselhos que tinham oferecido, não estaria atrasado, em apuros, ou talvez mesmo morto.
Mas não. O jardineiro acorreu para tranquilizá-los. Seguiram até a entrada. Alvoroçaram-se ao avistar o colega de longe. (A bem da verdade, vários sentiram uma ponta de decepção. O anseio mesquinho, mas humano, pela desgraça fora ainda esta vez frustrado). O funcionário que se recusava a ter um carro vinha com toda circunstância. Chegava sobre um elefante ornado com bela indumentária de seda amarela e verde, que resplandecia lindamente contra o cinza opaco da pele de paquiderme. Um para-sol com franjas douradas o protegia. O elefante avançava com toda pachorra, passo a passo, pé ante pé. De tempos em tempos, abanava as orelhas, assim, é provável, afastando o zumbido dos mosquitos asiáticos os mais renitentes. Balançava, galante, a tromba para lá, para cá, para cá, para lá. Ia, assim, pouco a pouco, percorrendo a distância até a sede da embaixada. E havia imensa dignidade em seu movimento lento. A pressa é só para aqueles a quem não é permitido o vagar.
O contratado local responsável por assuntos protocolares estremeceu só de imaginar os obstáculos burocráticos que teria de enfrentar para obter uma placa diplomática para aquele veículo.
Com delicadeza, o elefante sentou-se ao portão da embaixada para que ele pudesse deslizar até o chão. Antes de entregar o elefante ao guia, afagou o gigante e trocaram um olhar de despedida. Por um instante, de um lado e do outro, antes de cerrarem as pálpebras, refletiram-se luz, poeira, nuvens.
O funcionário adentrou pelos jardins. Logo logo teria início a execução do hino nacional. Juntou-se aos colegas sob uma tenda para quebrar o fulgor do sol. A linha melódica voluteava pelos ares perfumados por inflorescências desconhecidas. Nos olhos do funcionário, uma névoa se formou. Não, não eram brios patrióticos, que ele não era dado a isso, embora o observador desavisado a pudesse atribuir a tais. Era a memória dos olhos do elefante, sua parte mais fluida, onde encontrara boa quantidade da ternura do mundo. E muito da tristeza.