CECILIA PAVÓN E A ARTE DE ASSAR BISCOITNHOS DE CANELA — POR DANIEL FRANCOY
Ao começar a ler “pequeno inventário dos meus erros”, livro de contos da argentina Cecilia Pavón, recém-lançado pelas Edições Jabuticaba, acabei por me lembrar de um poema da autora que integra outro livro de sua autoria (“Discoteca Selvagem”), também publicado pela Jabuticaba. No poema, Pavón fala da ocasião em que foi até a uma padaria e viu, numa das paredes, um quadro de técnica amadora e execução rudimentar; e é justamente por conta dessa precariedade que a escritora argentina passa a apontar semelhanças entre a pintura e seus próprios versos, até que conclui que os seus poemas são como biscoitinhos de canela mal assados, feitos por uma mulher que não sabe nada de cozinha, mas que a eles se dedica durante o ócio das tardes de domingo.
É um poema cuja força lírica é resultado de uma ironia precisa. Pavón gosta de brincar que a arte decorre do que é precário e indefeso, e que a sua relação com a literatura revela a sua condição de amadora, no sentido mais singelo da palavra. Por essa razão, é inevitável que os seus temas orbitem aquilo que lhe é mais familiar, ou, como a própria autora escreve num dos seus contos, a sua produção acaba por ser um inventário agramatical, mais ou menos irônico, sobre a pequenez da experiência.
Para tanto, a narrativa em primeira pessoa é uma escolha que decorre da própria experiência estética que Pavón oferece ao leitor, pois permite o desenvolvimento de uma linguagem marcada pela fluidez e pela informalidade. Não por acaso, todos os contos de “pequeno inventário dos meus erros” são narrados em primeira pessoa, e cada um desses relatos é, ao seu modo, uma confidência. O que resta dessas confissões, contudo, não é a exposição de um erro ou de uma tolice. Se assim parece, isso apenas demonstra quão afiada é a linguagem de Pavón ao estabelecer um universo literário a partir de experiências que, a princípio personalíssimas, acabam por se comunicar com quem lê.
Trata-se de uma ambiguidade muito bem construída, que, ao dessacralizar a literatura, abre-se para um cotidiano pontuado não por pequenos erros, mas por pequenos assombros e obsessões, por uma tentativa de encontrar nas letras uma possibilidade de transcender — ainda que de maneira tímida e precária — os limites impostos pela própria experiência. É por essa razão que alguém resolve assar biscoitinhos de canela numa tediosa tarde, e é por essa mesma razão que alguém escreve poemas, participa de oficinas literárias e de torneios de rap, demora-se na contemplação das nuvens ou na enumeração das muitas bolsas que já teve na vida, cada qual com sua memória, e que permitem reconstituir algo de sua trajetória, de seus anseios mais íntimos.
Com isso, o resultado do jogo proposto é a revelação de sua própria identidade, pois Pavón não nos permite esquecer quem ela é: uma mulher que escreve num país latino-americano, atravessada por questões inerentes à sua condição, dentre as quais a maternidade, habitar um país periférico, a dificuldade de se dedicar somente à literatura (o tempo dedicado na concepção de um romance que nunca será escrito é uma imagem recorrente) e de sustentar as suas escolhas, o que consegue através de uma incessante exploração de sua rotina e dos cenários pelo quais se desloca. Esse é o universo de “pequeno inventário dos meus erros”, e o toque final da ambiguidade que atravessa todos os contos é a descrição dos encontros que Pávon tem com personagens que fazem um contraponto com a sua própria condição: a artista plástica inglesa, de reconhecido sucesso internacional, que vai a Buenos Aires tomada pelo desprezo e cujo comentário mais bondoso que dirige à cidade é “shithole”, ou o poeta alemão que, ao ouvir a ideia de um fracassado romance sobre mães em Buenos Aires, ataca: “quem se importa com isso?”, uma acusação que a autora argentina coloca em palavras ainda mais duras: (…) uma afirmação de desprezo que dizia: quem se importa com a sua poesia? Quem se importa com a sua vida? Quem se importa que tenha um filho? — proferindo uma acusação que parece apenas reafirmar o que a autora diz ao seu próprio respeito quando afirma que a sua literatura seria como biscoitinhos de canela mal assados, pois também por isso passam as provocações de Pávon: o que surge como um comentário auto-irônico, na realidade, está muito mais próximo da denúncia.
— Daniel Francoy