Buscando a origem deste As formas do mar: poesia contemporânea chinesa, lembro de um breve encontro que tive com o querido poeta Hu Xudong na sua última passagem por São Paulo. Enquanto bebíamos e conversávamos, ele sempre animado e provocador, Hu me perguntou sobre as minhas leituras de poetas chineses contemporâneos. Normalmente nossas trocas versavam muito mais sobre a poesia brasileira, ou sobre anedotas e piadas de suas passagens pelo Brasil, mas quase nunca sobre a poesia escrita na China. Admiti para o Hu que, apesar dos amigos chineses que fizera nos últimos anos, não conhecia quase nada da literatura produzida no país. Para não revelar a minha completa ignorância, lembrei que gostara muito da biografia escrita pelo poeta Bei Dao, Open City Gates, que eu lera em tradução para o inglês, e que me levara também a comprar uma antologia da sua poesia, hoje publicada no Brasil pela editora Moinhos. Diante da minha resposta, Hu deu uma de suas risadas e me respondeu dizendo que Bei Dao era “o poeta chinês contemporâneo preferido dos ocidentais”, o nome sempre lembrado quando ele perguntava sobre poesia chinesa aos seus amigos brasileiros ou americanos.
Algum tempo depois, pensando em nossa conversa, estas palavras, “o poeta chinês contemporâneo preferido dos ocidentais”, passaram a ecoar para mim como uma espécie de provocação. O riso de Hu quando respondi à sua pergunta me lembrou do riso irônico e involuntário que dou quando algum amigo estrangeiro comenta estar lendo poesia brasileira contemporânea e completa com nomes como João Cabral de Melo Neto, Hilda Hilst ou Augusto de Campos, todos tecnicamente contemporâneos — Augusto de Campos inclusive escrevendo e publicando em seu Instagram nos últimos anos –, mas todos também distantes o bastante da minha geração para que eu não os veja exatamente como meus contemporâneos, e certamente não como participantes da mesma cena poética na qual eu aprendi a ler poesia. Nos 25 anos entre a geração de Bei Dao e a de Hu, a China passou por transformações consideráveis, tanto política quanto culturalmente. Basta, neste sentido, lembrarmos que Bei Dao é um poeta fortemente marcado pela experiência violenta da Revolução Cultural chinesa, enquanto Hu nasceu há dois anos do fim deste período convoluto da história do país.
Ademais, Bei Dao se tornou o poeta chinês “preferido dos ocidentais” em parte por ter passado grande parte da sua vida exilado no ocidente, onde se tornou uma importante voz dissidente e pró democracia. Hu, por sua vez, se formou como poeta em uma pujante cena literária da Universidade de Pequim, onde posteriormente se tornou professor de Literatura Comparada, e conheceu o ocidente em um momento no qual a China se abria para mais trocas culturais, o que permitiu a sua participação em festivais e residências literárias mundo a fora, além de uma estadia como professor no Instituto Confúcio da Universidade de Brasília. São experiências de mundo, e da própria história chinesa recente, bastante diversas e que obviamente se abrem para poéticas diferentes. Ambas as experiências são, claro, importantes e verdadeiras e nos ajudam pelo contraste entender a complexidade do mundo em que vivemos. Sobre a geração de Bei Dao, ou seja, poetas nascidos nos anos 1940 e 1950, mas se estendendo até os anos 1960, temos publicada no Brasil a antologia Um barco remenda o mar (Martins Fontes, 2007), organizada e traduzida por Yao Feng e Régis Bonvicino.
Quais seriam, entretanto, os poetas que Hu considerava os seus contemporâneos? Aqueles que, junto dele, escreveram a jovem poesia chinesa dos anos 2000 e 2010? Poetas nascidos nos anos 1970, 1980 e 1990, poetas da minha geração? Logo após a passagem de Hu por São Paulo, ele me apresentou uma de suas alunas diletas, Inez Zhou, que visitava a cidade para pesquisar as transcriações que Haroldo de Campos fizera a partir de poetas chineses clássicos. Inez, outra importante intermediadora cultural trabalhando entre o Brasil e a China, se entusiasmou com a ideia de fomentarmos esta troca poética e se tornou o motor tradutório do projeto que começava a nascer. Ficou combinado, então, que Hu me apresentaria os jovens poetas contemporâneos chineses, aqueles que considerava os poetas da sua geração, quase todos inéditos em português, e alguns difíceis de encontrar mesmo em outras línguas com mais tradição de intercâmbio tradutório com a China. Inez trabalharia em uma primeira versão dos poemas selecionados ao português, os quais posteriormente seriam revistos pelo próprio Hu e por mim. Com a passagem repentina do Hu aos 47 anos, entretanto, deixamos o projeto de lado, até nosso caminho se cruzar com o da poeta Dora Ribeiro, que também conhecera nosso amigo quando morou na China e que se dispôs a participar deste projeto, agora transformado também em uma homenagem ao nosso querido Hu, um intrépido construtor de pontes entre o Brasil e a China.
Há algo de especial quando um poeta, alguém que vive a poesia do seu tempo e participa de uma cena literária, organiza uma antologia. Nas Edições Jabuticaba, temos buscado trabalhar com amigos de outros países, a fim de apresentar antologias da poesia contemporânea escrita nessas regiões; assim, já publicamos projetos com amigos da Alemanha e de Cuba. Se toda antologia — e ainda mais uma apresentando a literatura de um país continental, como a China — é sempre um pequeno e idiossincrático recorte entre muitos outros possíveis, o recorte feito por um poeta contemporâneo é sempre um recorte vivo, com personalidade, marcado por afetos e escolhas nem sempre óbvias, que somente quem participou daquela cena poética específica é capaz de entender por completo. Há, neste gesto, uma defesa da poesia enquanto comunidade, algo que, salvo engano, temos perdido nos últimos anos com a virtualidade da cena dos nossos tempos, na qual likes parecem estar substituindo as trocas. O diálogo e a convivência com a nossa comunidade imediata parecem insuficientes diante da ilusão de que podemos estar sempre alhures, buscando um palco onde as luzes aparentam ser mais brilhantes. Talvez a tomada das redes por trolls nos obrigue a voltar a pensar a poesia a partir de encontros reais, locais, e não mais somente a partir daquilo que o algoritmo e o mercado julgam relevante.
Tudo isso para dizer que, de certa forma, somente o Hu — a verdadeira força motriz por traz desta antologia — poderia explicar as suas escolhas: mas, infelizmente, ele não teve tempo de fazê-lo. Arrisco dizer, ainda assim, que os poemas e poetas que compõem este livro formam uma seleção representativa de um momento da cultura chinesa. Basta, neste sentido, pensarmos em como os temas trabalhados nos poemas aqui publicados são temas também presentes na recente exposição da artista chinesa Cao Fei — contemporânea dos poetas aqui selecionados –, exibida na Pinacoteca do Estado de São Paulo e organizada sob curadoria de Pollyana Quintella em 2023. Cao Fei, ao falar de sua relação com a cultura chinesa, assim como com a arte ocidental que também compõe o seu repertório de formação, confessa que, para a sua geração de artistas na China, nada lhes pertencia, portanto tudo lhes era possível; daí, em parte, a experimentação que vemos no seu trabalho e que pode, também, ser estendida para estes poetas. Seus temas abrangem tanto um arquivo herdado de uma tradição literária milenar, como a transformação desvairada de uma China contemporânea e desenvolvimentista; tanto as possibilidades e os perigos de um mundo cada vez mais virtual e dominado pela tecnologia, quanto a realidade de um Estado ainda onipresente que tenta controlar esses novos horizontes; tanto uma China defensora da sua identidade nacional e cultural, quanto uma China preocupada em se posicionar como uma liderança global e cosmopolita no teatro das nações.
Por fim, gostaria de agradecer a todos os poetas que aceitaram participar desta empreitada. A força das imagens nestes poemas — e na poesia chinesa de forma geral — mereceria uma apresentação a parte, pois engendra-se aqui, me parece, uma contribuição importante para a nossa poesia contemporânea. Grosso modo, nos últimos anos, a poesia brasileira parece ter investido em uma maior inteligibilidade e facilidade de leitura, flertando sempre com o prosaico, além de buscando intervenção direta no debate político e cultural. Sem descartar a validade dessas propostas, a força das imagens, como mostram estes poemas, é uma outra forma de dar conta de um mundo complexo e contraditório, onde nem sempre temos uma resposta a oferecer. É investimento em um tempo que não é o tempo do consumo e da modernidade, o tempo dos meios de comunicação de massa, mas o tempo lento da própria sedimentação poética e histórica. É a partir de imagens mais ou menos herméticas que os poetas desta antologia abrangem assuntos vários, distantes e familiares do leitor brasileiro, discutindo tanto a forma e a história da poesia chinesa, como as pautas políticas do presente. Interessante notar também como o consumismo — este horizonte comum do nosso tempo de calamidade ambiental — também preocupa estes poetas que escrevem a partir de uma China que muitas vezes parece para o leitor brasileiro uma alternativa comunista para alguns de nossos problemas, mas que não deixa de ser um motor do capitalismo global. Como aponta Su Huatian, “o debate sobre revolução é por ora substituído pelo da obesidade.”
Os poemas de Hu Xudong, que fecham o volume, foram selecionados por mim e por Inez Zhou. Decidimos não escolher poemas do Hu que falassem sobre as suas visitas ao Brasil, guardando esses textos para uma futura seleção de poemas seus sobre este nosso país de que ele tanto gostava. Agradecemos, ainda, ao professor Francisco Foot Hardman, outro amigo querido do Hu, que leu e comentou esta seleção de poemas e que gentilmente escreveu a orelha deste livro. Espero que vocês encontrem, aqui, um caminho para se aproximar da poesia chinesa contemporânea, uma poesia que, apesar do interesse que a China exerce no mundo, raramente aporta no Brasil. Que pelas mãos de Hu, Inez e Dora, vocês — assim como eu — comecem a se interessar um pouco mais pela poesia escrita na China hoje.
Marcelo Lotufo, Ilha do Desterro, 2024
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