Algumas palavras sobre Ivy Compton-Burnett — por Vilma Arêas e Marcelo Lotufo

Edições Jabuticaba
7 min readSep 22, 2024

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É provável que Ivy Compton-Burnett (1884–1969), escritora inglesa da geração de Virginia Woolf, James Joyce e D.H.Lawrence, nunca tenha sido lida e traduzida no Brasil. Felizmente ganhamos agora a oportunidade que nos oferece a Edições Jabuticaba, com a tradução e a publicação de Párocos e Mestres (Pastors and Masters).

Com o passar do tempo, o apagamento de nomes e obras literárias não é raro, mas não deixa de surpreender que Compton-Burnett também tenha sido atingida por tal esquecimento. Autora de 20 livros, prezada por escritores e críticos, foi às vezes julgada maior que Virginia Woolf, sendo eleita em 1967 “Companion” da “Royal Society of Literature”.

A própria Woolf anotou em 2 de abril de 1937 em seu Diário, com certo desgosto, que o crítico Edwin Muir considerava o seu livro The Years inferior “à amarga verdade, à intensa originalidade de uma Ivy Compton-Burnett.”1

Nesta mesma linha, vale a pena ler Natalia Ginzburg sobre Compton-Burnett. A escritora italiana lamentou não ter conhecido a escritora inglesa em vida e comentou os textos “áridos e geniais” de Compton-Burnett, nos quais natureza e lugares são invisíveis, pois ela “não perde tempo com descrições”. Mesmo assim, para Ginzburg, os sentimos ao nosso redor “como se ela os tivesse pintado em uma tela”. Em tal cenário, enredos se desenrolam “onde amores incestuosos são secretamente consumados, bebês são assassinados e testamentos, destruídos; todavia, jamais um grito rompe a quietude, jamais uma gota de sangue aparece nas paredes.”2

O que julgamos mais importante na estrutura dos livros de Compton-Burnett, entretanto, repousa no silêncio. Isto é, nem tudo é dito, nada é o que parece à primeira vista, tudo é subtexto. Sendo assim, nada pode ser considerado simples. Alguns críticos perceberam que os temas fundamentais da sua obra se movem entre correntes subterrâneas de emoções, ocultas sob a superfície supostamente calma da sociedade vitoriana. A habilidade rara de Compton-Burnett na composição de diálogos e o tom certo na captura de cenas domésticas são trabalhados de maneira concisa e lacônica, como se o ideal da escritora fosse o alcance da pura verdade, além da literatura.

A vida de Compton-Burnett também não foi simples, para dizer o mínimo. Os pais morreram relativamente cedo, assim como quatro de seus doze irmãos, dos quais duas se suicidaram num dia de Natal, e um morreu lutando na Primeira Guerra. Em 1918 a própria Ivy contraiu influenza, ficando durante um mês à beira da morte. Podemos dizer que sua vida se estabilizou a partir do encontro com Margaret Jourdain, especialista famosa em artes decorativas e móveis antigos, passando a viver juntas a partir de 1919. Embora já houvesse escrito um primeiro romance, foi então que a escritora passou a produzir com maior frequência, e estabeleceu este livro de 1925, Párocos e Mestres, como o verdadeiro início de sua carreira. O semanário The New Statesman, que cobria a literatura do período de forma sistemática, considerou o livro “um trabalho de gênio”.

Mas em se tratando de Ivy Compton-Burnet, todos os caminhos aparentemente se bifurcam, antes de se encontrarem. Num texto em que discorre sobre a sua vida e obra, afirma que tudo havia sido tão monótono que quase não havia informações a dar. Criada no campo com pais e irmãos, formou-se em Estudos Clássicos no Holloway College, da Universidade de Londres; viveu com a família enquanto jovem e mais tarde num apartamento próprio, na capital inglesa. Tinha muitos e bons amigos, nem todos escritores. E que não havia realmente nada mais a dizer.

Não é verdade que essa curta autoexplicação da sua vida também se espelha no entendimento que ela nos passa de uma obra lacônica, cercada de subtextos, meias palavras e algumas sugestões irônicas de melodrama? Será que muitos leitores, uma vez terminada a leitura, não concordariam com a afirmação de que não havia nada mais a dizer? De que aquilo que realmente importa contar já está dito na relutânca e dificuldade em fazê-lo?

Párocos e mestres ocupa um lugar particular na obra de Compton-Burnett. É com este romance que a autora encontra a forma que irá utilizar nos seus livros subsequentes, com longos diálogos e pouca ou nenhuma descrição. Diferente de outros livros da autora, entretanto, sua construção tem algo de prismática, centrada em diversos personagens e ambientes, e se passa não no período vitoriano, mas no início do século XX. A trama se constrói através de diferentes histórias, todas de alguma forma relacionadas a uma escola para meninos fundada pelo pedante Sr. Herrick.

Assim, ao longo do livro, encontramos espalhados, e algo diluídos pela rotina e pelo decoro, conflitos entre irmãos, confrontos geracionais, traição entre amigos, famílias que se esfacelam, empregados e patrões que não se suportam, discussões sobre o sufrágio feminino, e uma educação falida e sem sentido. Desses tantos enredos, contudo, emerge um argumento geral sobre a dinâmica múltipla da vida e da própria história, construída, quase sempre, por desejos mesquinhos e não por grandes questões. Compton-Burnett, como seus contemporâneos mais conhecidos, entendia que ambições particulares e egoístas tendem a se sobrepor no dia a dia às grandes narrativas.

Dos sete capítulos do livro, cinco se passam na própria escola e dois acompanham famílias de párocos em suas respectivas propriedades. Perpassam os diálogos algumas linhas que costuram o livro. Há a tradicional festa de fim de ano da escola, aguardada por todos. Há, também, o desejo de algumas personagens em escrever, e os livros que Herrick e Bumpus teriam escrito e que pretendem apresentar a seus amigos. Há a preocupação com o dinheiro, exacerbada por uma elite decadente que não quer trabalhar; uma preocupação que ocupa patrões e empregados, professores e párocos, moldando as ações do romance. Os seis capítulos iniciais do livro são coroados com um jantar, no qual todas as personagens se encontram, e no qual vale o chiste, a anedota literária, e tudo aquilo que puder ocultar as verdadeiras preocupações das personagens. Os silêncios revelam tanto ou mais do que as confissões.

Por fim, podemos organizar as personagens de Párocos e mestres em quatro grupos, marcados por suas relações mais próximas, mas também pela relação de classe e pelos interesses que estabelecem entre si. Há, em um primeiro plano, Nicholas Herrick e sua irmã Emily Herrick, que são os donos da escola. Junto deles, podemos agrupar Richard Bumpus (também referido como Dickie) e William Masson, amigos antigos de Herrick, e professores na universidade ao lado da qual está o colégio. Em um segundo grupo, temos Charles e Emily Merry, o diretor da escola e sua esposa. São eles quem verdadeiramente trabalham e cuidam do dia a dia da instituição, mesmo não tendo nenhum dos dois a formação necessária para dirigirem o estabelecimento e darem aulas. O jovem Sr. Burgess e a Srta. Basden, os dois principais professores do colégio, ajudam o casal de diretores com os alunos.

Além destes dois núcleos principais, temos as famílias Fletcher e Bentley, no entorno das quais girará respectivamente os capítulos 3 e 5. O Reverendo Peter Fletcher é primo de Bumpus, e vive com sua esposa, Theresa, amiga antiga da Srta. Herrick. Completam o primeiro grupo Lydia Fletcher, que é irmã do Sr. Fletcher, e Francis, que é seu sobrinho e também é pastor. Já a família Bentley é composta pelo reverendo Henry Bentley, sua filha do primeiro casamento, Delia Bentley, e seus dois filhos do segundo casamento, Harry e John, que estudam na escola de Herrick. O Sr. Bentley está viúvo pela segunda vez. É uma gafe de Merry para com o Sr. Bentley que levará Nicholas e Emily Herrick a convidarem todos para um jantar no capítulo final do livro, em uma tentativa de remediar a impressão ruim que o pai de dois de seus alunos pode ter tido da escola.

Esses adultos inadequados mantêm os alunos, pessimamente tratados, em permanente estado de ansiedade, o que faz Natalia Ginzburg observar, no mesmo texto já citado, que os personagens de Párocos e Mestres usam a linguagem “trocando palavras que se assemelhavam a picadas de serpentes.” Isto é, os diálogos entre elas são golpes sorrateiros, embrulhados em veneno, ou humor ácido, que só podem ser realmente entendidos pelas suas entrelinhas.

Formalmente os textos de Compton-Burnett abandonam as técnicas usuais da ficção, aproximando-se do texto teatral. Esta escolha problematizou sua inclusão no cânone modernista, pois a crítica teve dificuldades em perceber o que havia de inovador em sua escrita, sempre apoiada no paradoxo e no não dito. Esta solução inesperada chegou mesmo a criar, para alguns, a impossibilidade de leitura dando a ela a pecha de hermética. É surpreendente, assim, que a originalidade de Ivy Compton-Burnett tenha escapado à própria Woolf, que a descreveu como uma pessoa “descolorida”, assim como a sua obra. Em meio a competição, a personalidade resguardada de Compton-Burnett, avessa aos excessos flamboyants do círculo de Bloomsbury, não colaborou para sua divulgação junto da literatura modernista inglesa.

Inquirida sobre a estrutura dupla dos seus textos — entre a ficção e o teatro — a escritora afirmou que eles realmente se localizavam em um entre-lugar, sem ser inteiramente uma coisa ou outra, ainda que ela insistisse em chamá-los de romance. Se os diálogos podem ser tomados como teatrais, o caráter íntimo, e a forma longa e elaborada de suas construções, parecem apontar para a ficção. Não por acaso existem no livro observações veladas sobre literatura, obedecendo assim aos dispositivos e questionamentos estruturais do texto. A resposta de Compton-Burnett é paradoxal, mas nos leva a concluir que a autora, ainda que de forma inesperada, participa conscientemente das experimentações literárias de seu tempo e merece maior atenção do leitor e da crítica brasileiros.

Vilma Arêas e Marcelo F. Lotufo

  1. Viviane Forrester, Virginia Woolf:El Vicio Absurdo. trad. Victor Pozanco e Emilio Teixidor. Madrid, Ultramar Editores, 1978, p.112.
  2. Natalia Ginzburg, “A grande Senhorinha”, em Não me perguntes jamais. trad. Julia Scamparini. Belo-Horizonte, Âyné, 2022, p.113.

Este texto é o prefácio que acompanha a versão brasileira de Párocos e mestres, publicado pelas Edições Jabuticaba em 2023. Leia, também, a matéria de Guilerme Pavarin que saiu sobre o livro na Folha de São Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2023/05/ivy-compton-burnett-autora-comparada-a-virginia-woolf-sai-no-brasil-pela-1a-vez.shtml

O livro está disponível em nossa loja online: https://www.edicoesjabuticaba.com.br/parocos-e-mestres-ivy-compton-burnett

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